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Mulheres no Terror: O Interior Amaldiçoado


Esse texto é uma tradução livre do texto: The Cursed Interior: Women in Horror escrito por Gretchen Felker-Martin (@scumbelievable) para o VRV Blog, postado no dia 20 de agosto de 2018.


NOTA: Há algumas imagens e descrições bem gráficas durante o texto!!


“Emocional”. A palavra não se refere à experiência de ter emoções, mas de ser subjugada por elas, de se tornar um vetor para essa expressão confusa e difícil. Ela evoca imagens de olhos vermelhos e inchados, ranho escorrendo por lábios trêmulos, vozes distorcidas pela dor em guinchos ininteligíveis.


Também é uma palavra usada, quase exclusivamente, para se referir à mulheres. Nossa cultura tem uma profunda aversão aos aspectos mais desagradáveis ​​do interior das mulheres — não apenas as lágrimas e a raiva, mas as coisas que inflamam dentro de nós, desde nossas infâncias até aos nossos leitos de morte. Nossos ressentimentos mais profundos, nossos sonhos sufocados, nosso ódio cruelmente cultivado por nossos próprios corpos.

As saídas pelas quais as mulheres podem liberar esses impulsos são poucas e distantes, e praticamente nenhuma delas escapam à censura sufocante de nossos tabus em torno da transgressão feminina. Pensem no sombrio e moralista “como isso aconteceu? ”, que, com um ar de repugnância, os âncoras de jornais informam sobre mulheres que afogam suas crianças no banho ou envenenam a si mesmas e a seus familiares na mesa de jantar. Não há nenhuma tentativa de entender que pressões terríveis podem deformar uma mente de uma maneira tão grande, ou como as instituições basilares da nossa cultura, casamento, maternidade e sexo podem ser uma tortura para as mulheres, que são esperadas que participem dessas instituições.


As respostas não estão condenadas a olhos marejados, mas no horror. Ao canalizar o interior obscuro das mulheres em filmes de terror e analisar as maneiras pelas quais suas emoções reprimidas emergem de suas mentes inconscientes para a realidade, podemos começar a entender as formas como os seus sofrimentos se manifestam.

Sangue e Fantasia


Na obra-prima do terror de 1981, Possessão, de Andrzej Żuławski, a turbulência interna da dona-de-casa reprimida Anna (Isabelle Adjani) começa a consumir os destroços em colapso de sua vida doméstica. No ponto crucial do filme, seu casamento com Mark — um chorão e infantil Sam Neill — dissolve-se em uma apatia e impotência apologética da parte dela, causando raiva nele.


O casal senta no sofá enquanto Mark fala sem parar sobre suas necessidades mesquinhas. Enquanto o faz, Anna se retira a um devaneio, imaginando-se carregando mantimentos através de uma estação de metrô vazia. Seus passos ecoam na escuridão. Seu rosto se contorce, um sorriso maníaco floresce quando ela sai da escada rolante e valsa passando por um vendedor de bilhetes indiferente, em seu estande. Ela bate contra as paredes de azulejos, balançando sua bolsa de malha cheia de leite e produtos, enquanto uma risada selvagem borbulha de algum lugar dentro dela.


Ao final da cena, ela se ajoelha no chão do terminal, uma poça de leite e sangue se espalhando por entre as pernas, todo o corpo curvado e tremendo com a força de seus gritos. Quando o espetáculo de sua desintegração mental se confunde com o final do monólogo de Mark, a coisa toda entra em foco — essa é a vida diária de Anna. Sua existência é tão limitada e opressora que os elementos mais vitais e poderosos de sua personalidade foram reduzidos a uma gritante incoerência, uma chama escura queimando quente e furiosa dentro da casca vazia do eu que ela fabricava para sobreviver como esposa e mãe. É tão virulento que faz você desviar o olhar ao assistir.


No hit de terror deste ano, Hereditário (2018), Annie Graham (Toni Collette) lamenta com a sua amiga Joan de um incidente pelo qual ela foi responsável enquanto estava sonâmbula, que danificou o seu relacionamento com seus filhos, talvez de maneira irreparável. O incidente a que ela está se referindo, e que ela menospreza com irritação em todas as oportunidades, era o fato de ter banhado a si mesma e a seus filhos com álcool.


“Eu acordei no instante, quero dizer no instante em que acendi o fósforo”, ela zomba, como se devesse ter sido óbvio para seus filhos que a coisa toda era apenas um acidente inofensivo. É difícil imaginar, porém, que nenhuma emoção subconsciente apoiasse um ato de quase-infanticídio tão deliberado e violento.


Torna-se ainda mais difícil quando a vemos — profundamente no auge de seu próprio sonho — admitir a seu filho que ela nunca quis ser sua mãe, que em algum nível ela se ressente e não gosta dele. Mais tarde, esse ressentimento ferve à mesa de jantar em um discurso tóxico e narcisista, e ao final do filme ele se dissolve em uma raiva sem palavras, em um desejo de tirar a própria alma de seu filho de seu corpo e enviá-lo ao esquecimento.

Isso é o que o terror nos diz — que no inconsciente coletivo de todas as mulheres, as feridas psíquicas são tão profundas e cruas que até mesmo tentar removê-las irão torná-las um caminho para uma violência primitiva.


Considere o esgotante concurso de brutalidade entre homens e mulheres que se desenrola entre Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg e seus personagens sem nomes que são marido e mulher, em Anticristo (2009) de Lars von Trier. Depois que o terapeuta condescendente de Dafoe submete sua própria esposa aflita a uma antiética terapia que passa de todos os limites –tentando empurrá-la e manipulá-la através de seu desgosto com a morte de seu filho — ela se torna uma espécie de avatar da feminilidade, mutilada como a própria floresta que os rodeia, assombrada pelos fantasmas sem rosto de inúmeras outras mulheres perdidas no tempo.

Esse isolamento e ampliação da feminilidade encontra um eco recente em Sob a Pele (2013), de Jonathan Glazer, que emprega uma imagem seminal de uma superfície preta espelhada em um plano infinito de escuridão como uma forma de nos deixar vislumbrar a natureza desconhecida, alienígena, reprimida e voraz da feminilidade. Os homens que seguem a fêmea (Scarlett Johansson) para o vazio, afundam-se sob sua superfície para serem consumidos. Seus olhos ainda assim, se fixam em sua figura recuada. Apenas a imagem tem o poder de movê-los, mesmo quando a realidade abaixo dela se rasga.


Mas se essa fonte de uma pessoa ferida e frustrada puder encontrar espaço nos sonhos e em outros espaços limítrofes antes de emergir em sua forma violenta, ela também pode canalizar suas forças formativas no desejo sexual.


Sexo e Violência


O filme de terror para adolescentes de Richard Bates Jr feito em 2012, Excision, nos dá uma ilustração feia de como o abuso emocional e a repressão interagem com o despertar sexual. As visões barrocas de Pauline (AnnaLynne McCord) de si mesma na figura de uma deusa imperatriz variam de devaneios de arrancar um feto sem vida de seu corpo e inspecioná-lo com um desapego clínico a fantasias de uma menstruação explosiva durante o sexo. Tendo a sua terapia negada por sua mãe abusiva (Traci Lords), Pauline se aprofunda na sujeira de sua fixação cirúrgica insalubre até a ilusão e a realidade se fundirem.


Da mesma forma, as fantasias sexuais avassaladoras experimentadas pela irmã Jeanne (Vanessa Redgrave) no infame Os Demônios (1971), de Ken Russell, revelam-se virulentas ao entrar em contato com o mundo exterior. Sua ânsia por Urbain Grandier (Oliver Reed) é tão entrelaçada com sua frustração em sua vida de orações de clausura e profunda auto aversão que ela sente por sua deformidade — sua corcunda– que ela se torna incapaz de conter esse coquetel tóxico. Esse desejo se torna o catalisador de uma onda de um caos perverso e psicossexual, culminando na tortura e execução de Grandier. Seus sonhos eróticos da sua crucificação sexualizada, de lamber o sangue da ferida da lança atravessada em seu corpo, exultando em sua mortalidade tanto quanto em seu corpo, são trazidos à tona pela força de seus apetites reprimidos e malformados.


Repressão e Desejo


O interior das mulheres vive trabalhando sob a maldição de duas cabeças da repressão social e internalizada. Nós autocensuramos todas as nossas reações, debatendo incessantemente conosco sobre quais pensamentos são permitidos e quais são proibidos ou impuros. Nossos sonhos, ou o reino onírico da psicose, são os únicos espaços em que podemos ser verdadeiramente honestas com nós mesmas; nossos filtros e obsessivo auto monitoramento desaparecem para revelar a verdade dos nossos desejos. Eles raramente são bonitos.


E assim, um fio comum percorre as visões do horror da destruição e do abandono feminino. Cada um expressa de alguma forma um desejo não realizado, um desejo de transgredir — violar os tabus em torno do que é e o que não é feminino.


Para os homens — desinibidos pelas normas culturais repressivas em torno da raiva feminina, da insatisfação e da luxúria — a linha do impulso proibido para a ação é tão curta quanto brutal. Para as mulheres, a transgressão requer inevitavelmente um período de gestação no reino da fantasia. Talvez seja por isso que, após tanto tempo fervendo dentro de nós sob uma pressão tão terrível e implacável, os desejos das mulheres têm esse poder de fascinar e aterrorizar.



Postado originalmente no Medium.



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O Mulheres no Horror é um espaço de troca de informação, onde  compartilhando artigos e resenhas sobre livros e filmes, publicamos dicas sobre a temática, contamos a histórias de mulheres e pessoas queer que fazem parte do cinema e literatura de Horror, realizamos traduções de textos, entrevistas com pesquisadoras e cineastas, dentre outros conteúdos.

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