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As Mulheres que moldaram o Gênero do Terror (Parte 2): Nascimento

Mary Shelley e o horror da maternidade

Esse texto é uma tradução livre do texto: Birth, segundo texto da série The Women Who Shaped the Horror Genre, que faz parte de uma série de quatro textos escritos por Sady Doyle ( @sadydoyle ) para o The Fearsome is Female, postado no dia 22 de maio de 2017.


Todo sábado um texto da série será postado aqui no Mulheres no Horror. Fiquem ligados!

 

Antes que aconteça, as mulheres começam a sonhar


Os sonhos sobre água, de início, são os mais comuns. Inundações, marés altas, banheiras transbordadas. São também comuns, sonhos sobre longas viagens; mulheres se veem apressadas para ir ao aeroporto, no meio da noite, sem ter certeza de terem embalado o suficiente para a viagem, às vezes sem nem sequer ter certeza de onde deveriam ir ou porquê.


Esses sonhos são sintomas. Quase todas as mulheres os têm. Eles não podem ser explicados como uma simples reação às circunstâncias; eles geralmente começam antes que as próprias mulheres saibam o que está acontecendo. Algumas mulheres se lembram de terem a mesma mensagem codificada durante semanas — Vou para algum lugar novo; eu não estou pronta — antes mesmo delas realizarem o teste de gravidez e perceberem que o seu destino desconhecido é um bebê.


À medida que a gravidez avança, os sonhos ficam mais vívidos e envolventes. Eles também pioram. As mulheres grávidas sonham mais do que o resto de nós, e a maioria dos sonhos é ruim; no terceiro trimestre, elas relatam ter pesadelos, em média, umas duas vezes e meia à mais do que as outras pessoas. Muitas vezes, são sonhos sobre abandonar o bebê, ou não saber cuidar deles; as mulheres sonham em deixar acidentalmente o filho em uma máquina de lavar louça, ou em colocá-lo em algum lugar e não conseguir encontrá-lo quando voltarem. Um pesadelo, que é muito comum, o suficiente para ter seu próprio nome — o sonho do “bebê na cama” — consiste em saber que seu bebê está preso em algum lugar da cama com você. Você o ouve chorando, você sabe que ele está em apuros. No entanto, não importa o quanto você o procure, não importa quantos cobertores você arranca procurando por ele, você nunca pode encontrá-lo. Seu bebê está sempre a centímetros de distância, gritando por você, mas fora do seu alcance.


Mas o sonho mais comum, de longe, é do feto que não é humano. Que é de alguma forma, errado. Mulheres atrás de mulheres, atrás de mulheres, relatam este sonho específico, com pequenas variações: dão à luz a coelhos, cachorros, uma ninhada cheia de gatinhos, uma lâmpada, uma escova de dentes, uma carne moída. Uma mulher teve um sonho: “Eu fui para uma ultrassonografia e me disseram que o bebê era uma lagosta. Eles trataram a notícia como se fosse de suma importância. E eu só pensava ‘Oh, bem, espero que eu tenha um bebê humano da próxima vez.’ “Em outros, os bebês são tecnicamente humanos, mas drasticamente fora da curva; as mulheres sonham em dar à luz a adultos bem crescidos, ou um bebê com a cabeça de um homem e um pescoço sem fim, ou “um anão que usa smoking, fuma cigarro, e que conta piadas sujas ao pessoal do hospital”, ou “um garotinho com uma bunda muito peluda e que vive em um aquário. ”


Ou, o pior de tudo, pode haver algo realmente errado com o bebê. Ele pode ser mais do que feio; pode ser mau. Uma mulher deu à luz a um monstro; um cão que destruiu o mundo. “[Ele] literalmente destruiu a humanidade e escravizou aqueles que viveram”, disse ela, “e vinha correndo me chamando de mamãe, se qualquer batalha não saísse conforme ele planejou”.


Estes são os sonhos que as mulheres têm desde o começo. Então vamos começar por aqui: em um livro que começa e termina com uma longa jornada sobre água, e um navio preso em uma geleira no fim do mundo. Um livro sobre abandono; sobre não saber cuidar da vida que você criou; e estar horrorizado ao descobrir que seu filho não é humano o bastante. Um dos pilares do gênero do terror, como o conhecemos, é um livro sobre um monstro que vem chamando pela mamãe, e começou com um pesadelo de uma mãe.



A descrição de Mary Shelley do sonho que provocou Frankenstein é, até hoje, quase tão famosa quanto o próprio livro. “Eu vi o pálido estudante de artes profanas, ajoelhado ao lado da coisa que ele criou,” etc., etc. Você já ouviu tudo isso antes. No entanto, existe, no meio de toda essa história, uma similaridade oculta com a mulher que sonhava em dar à luz a um saudável bebê lagosta.

“Seu sucesso aterrorizaria o artista”, escreveu Shelley; “Ele se afastaria de seu odioso trabalho, horrorizado. Ele esperaria que, abandonando-o, a pequena centelha de vida que ele havia transferido, desaparecesse; que essa coisa, que havia recebido uma animação tão imperfeita, voltaria a ser matéria morta … Ele dorme, mas ele é despertado; ele abre os olhos; e contempla a coisa horrível em sua cabeceira, abrindo suas cortinas e olhando para ele com olhos amarelos, lacrimosos, mas, especulativos. ”


Ele dorme, mas ele é despertado. É esse pequeno detalhe, perfeito, quase acidental, que lembra exatamente quem escreveu isso, a mais feminina de todas as histórias de monstros clássicos.


Muitas pessoas — particularmente pessoas do sexo masculino — interpretaram Frankenstein como uma história, principalmente, tecnológica, tanto na ficção científica quanto no terror. Eles a veem como uma parábola da arrogância científica; um homem leva a sua experiencia para além dos limites da razão ou da segurança, e paga um preço terrível. É assim que Frankenstein foi lembrado na cultura pop, principalmente em adaptações — calabouços de laboratório, cientistas vestidos de branco que estão gritando! ESTÁ VIVO !!!!, e raios por todo o lugar, nada disso está no romance de Shelley — mas, influenciou vários filmes. De Jurassic Park à Westworld, ambos são repetições da história de Frankenstein, um com DNA de dinossauros, o outro com IA rebeldes, tomando o lugar de cadáveres reanimados. O Exterminador do Futuro deve muito à Frankenstein; não só tem várias partes de sua premissa baseada em Shelley, mas o desempenho troncudo, não-verbal, e implacável de Schwarzenegger, como um robô assassino, deve um pouco mais a Boris Karloff.


Ainda assim, no texto original de Shelley, Frankenstein era insistentemente biológico, mais A Profecia do que Ex Machina. Para evidenciar, não consigo pensar em nada melhor do que esse detalhe — o que, aliás, finaliza o livro. A primeira coisa que Victor Frankenstein faz, depois de criar seu monstro, é desmaiar. E a primeira coisa que o monstro faz, uma vez já criado, é ir direto acordá-lo. É o tipo de coisa que Mary Shelley incluiu, que um autor masculino em seu lugar nem sequer pensaria em dar ênfase. Como mãe, ela sabia que dar à luz, ainda que difícil, é apenas metade da batalha. A parte realmente difícil vem quando o bebê continua te acordando no meio da noite, exigindo sua atenção.


De fato, a ciência da ciência de Victor Frankenstein sempre foi mais do que um pouco esboçada. Como a internet alegremente já apontou, Frankenstein não era realmente um médico, nem mesmo um cientista formado, quando cria o seu monstro; ele é basicamente um calouro da faculdade, experimentando a vida e a morte em seu tempo livre. Também não poderia ser considerado um leitor mais inteligente ou melhor educado do que seus colegas estudantes; antes que ele entrasse para a faculdade, sua educação era tão limitada que ele lia textos de magos e alquimistas, assumindo que eles eram trabalhos científicos reais. Ao ser admitido, ele se deu bem — Frankenstein foi sua grande descoberta — mas Shelley, notadamente, não retrata essa descoberta de forma convincente ou mesmo pseudocientífica. O livro resume assim:

[Os] estágios da descoberta foram distintos e prováveis. Depois de dias e noites de muito trabalho e fatiga, consegui descobrir a causa da vida e sua geração. Além disso, eu me tornei capaz de conferir estímulos sobre matérias sem vida.

No que diz respeito ao drama, isso é como substituir toda a última metade do Onze Homens E Um Segredo, com uma fala do George Clooney dizendo: “E no fim, eu consegui roubar o cassino.” Há uma explicação plausível da autora para a omissão; Victor está, supostamente, contando esta história para um capitão do Oceano Ártico, e não quer entrar em detalhes para que o capitão não seja tentado a recriar o experimento. Ainda assim, você pode perceber o porquê os filmes tiveram que adicionar todo esse relâmpago. O terrível processo de reanimação de Victor Frankenstein — o conceito central do livro, e provavelmente a principal atração do ponto de vista da ficção-científica — simplesmente não está em Frankenstein.


Mas realmente não precisava estar. De fato, o homem sempre conheceu “a causa da vida e sua geração”, e o objetivo de Victor — “a criação de um ser humano”, em suas palavras — sempre esteve dentro do alcance do homem. Se não fosse, não teríamos humanos. O processo só parece um mistério para o Homem porque é a Mulher que tipicamente faz a fabricação


Com o risco de afirmar o óbvio: Biologia não é gênero. Muitos homens trans estiveram grávidos e / ou deram à luz, assim como pessoas não binárias. Ainda assim, o parto e a criação de crianças — particularmente no tempo de Shelley — sempre foram vistos como trabalho feminino. Eles não são exclusivamente das mulheres, mas são (aham) mão-de-obra feminina. E, apesar de Mary Shelley ocultar o seu gênero, filtrando a sua voz através de um elenco predominante de narradores masculinos — e através do anonimato; seu nome não apareceu em Frankenstein até 1822, quatro anos depois de ser publicado — ela ainda assim encontrou maneiras de relatar sua própria experiência feminina subliminarmente na obra. A maternidade permeia este livro tão profundamente que está em todas as metáforas; menos um subtexto do que o material real, do qual a narrativa é trabalhada.


Ao criar seu monstro, por exemplo, Frankenstein menciona que “inverno, primavera e verão faleceram durante meus trabalhos” — ou seja, cerca de nove meses. (Mais tarde, confusamente, ele nos diz que demorou dois anos, embora ele possa estar incluindo seus estudos originais nesse período.) Não obstante, Frankenstein passa por vários arroubos sentimentais durante todo o tempo — “uma nova existência me adoraria como seu criador e fonte; muitas excelentes e alegres criaturas irão dever o seu ser para mim “- há também a preocupação de que algo vai dar errado antes de ultrapassar a linha de chegada:” [Agora] todos os dias me mostravam mais claramente o quanto eu tinha conseguido. Mas meu entusiasmo foi substituído pela minha ansiedade [.] “ A fadiga que ele experimenta quase o mata. Para não mencionar a insônia e as mudanças de humor: “Toda noite uma febre lenta me oprimia, e eu ficava nervoso à medida que a dor aumentava — uma doença que eu lamentava ainda mais por ter desfrutado de uma excelente saúde e de ter me vangloriado da firmeza de meus nervos “.


Victor Frankenstein não está apenas fazendo uma experiência. Victor Frankenstein está grávido. E, sabiamente, ele escreve muito sobre seu desconforto como parte do processo: “Eu acreditava que o exercício e a diversão logo expulsariam meus sintomas, e me prometi ambos quando minha criação estivesse completa”.


Após a sua criação estiver completa, é claro, o exercício e a diversão se tornarão quase impossíveis. Mas esse é o menor dos seus problemas.


Assim como o processo de criação de Frankenstein se assemelha a gravidez, é tentador ver a aversão de Frankenstein por sua criatura como uma espécie de depressão pós-parto sobrenatural.


“Por isso”, ele nos diz, “eu me privava de descanso e saúde. Eu desejava isso com um ardor que superava a moderação; mas, agora que eu consegui, esses sonhos desapareceram, e um desgosto e um horror sem fôlego, preencheram o meu coração “.


Nota: O monstro realmente não fez nada de errado nesse momento. Ele não ameaçou Frankenstein de nenhuma maneira; ele era apenas feio. Na verdade, a tragédia de Frankenstein vem da crescente suspeição do leitor de que o monstro não teria feito nada de errado, se Victor tivesse sido um pai solícito. Sua fúria terrível- o impulso pela vingança que o consome na metade do livro, juntamente com a vida de Victor, seus entes queridos, sua saúde e sanidade — vem somente depois que ele foi abandonado, deixado à deriva em um mundo hostil, sem orientação moral. Em seus primeiros dias, o monstro de um cadáver de nove metros de altura, é hilariante, quase adorável, como um bebê. Em seu livro de memórias, Little Labours, Rivka Galchen faz alguns paralelos: as descrições do monstro espiando sobre a borda da cama de Victor enquanto ele dorme, ou agarrando-se aos joelhos de um homem velho e soluçando quando ele o ameaçou. Minha parte favorita é quando o monstro recém-nascido anda por aí e atira suas roupas molhadas ao relento: “Eu era um pobre, desamparado e miserável”, lembra ele. “Eu soube e não pude distinguir nada, mas ao sentir a dor me invadir por todos os lados, sentei e chorei”.


Dica: Da próxima vez que você ver um bebê chorando devido a uma fralda molhada, tente imaginar a cena deste monólogo, de preferência com a voz de barítono do Patrick-Stewart.


Então, o monstro, como todos os recém-nascidos, é inocente. Ainda assim, Victor não o ama. Muitas mulheres, de fato, adoram seus bebês — não imediatamente, não com a incômoda e instintiva pressa de devoção que nos dizem que é uma parte natural de ser mãe. Afinal de contas, é uma experiência dolorosa. Não só essas mulheres estão sobrecarregadas com a dor física e a privação de sono e a carência, em uma realidade de criaturas gritantes, que elas criaram; elas ainda acreditam que são pessoas ruins, ou que não são mulheres naturais, por estarem sobrecarregadas. E elas se sentem assim apesar do (ou talvez por causa do) fato de que amor materno deveria ser instantâneo, assim como todas as variações de amor instantâneo, ser uma invenção; o vínculo genuíno com um bebê leva, na maioria das vezes, umas duas semanas a um ano.


“Eu quase caí no chão, completamente abatido e com extrema fraqueza”, nos diz o Frankenstein após o parto “, e misturado com esse horror, senti o amargor do desapontamento. Os sonhos que haviam sido minha comida e descanso por tanto tempo, agora se tornaram um inferno para mim. E a mudança foi tão rápida, uma completa ruína”.


De certa forma, Victor Frankenstein é como qualquer mãe nova, consumida com a culpa que vem de uma verdade indescritível: que ter bebês não o consertam ou completam você, que eles não atendem a ninguém automaticamente ou proporcionam sentido a sua vida, que de outra forma você não teria, que você pode se tornar um pai sem se tornar uma pessoa melhor, mais feliz ou mais amorosa. Esta coisa, que ele queria tanto, e cuja chegada ele esperava ser o evento mais alegre e gratificante de sua vida, tornou-se uma parte real e imperfeita do mundo. A responsabilidade é aterrorizante.


No entanto, a decepção de Mary Shelley foi mais amarga do que a maioria — e sua culpa mais profunda. Para entender isso, precisamos nos aprofundar nas origens de Frankenstein; não a versão oficial de Shelley, o tão conhecido sonho sobre o pálido estudante, mas a versão pesadelo dele.



A filha de Mary Shelley foi chamada Clara. Ela morreu quando tinha duas semanas de vida. É incrível que Clara tenha vivido tanto tempo, e quase não havia nada que Mary Shelley pudesse ter feito para salvá-la; ela nasceu pelo menos dois meses prematura. Mesmo no século XXI, com acesso à melhor tecnologia médica do mundo, os bebês prematuros sobrevivem quase a metade do tempo.


Contudo: “Eu penso sobre a pequenina todos os dias”, Shelley disse depois, ao seu jornal. Durante a noite, ela também pensava: “Sonhei que o meu pequeno bebê voltou à vida — que estava muito frio, então nós a esquentamos no fogo e a vivemos”, escreveu ela. “Eu acordo e não encontro nenhum bebê”.


O monstro de Frankenstein não é apenas um nascimento terrível. Ele é um natimorto, um aborto espontâneo; em um momento, ele se chama de “um aborto”. Mary Shelley não era a culpada pela morte de Clara, mas, ela não sabia disso. Em seus pesadelos, ela ainda tentava desfazer tudo o que tinha feito para matá-la, pensando em maneiras de trazer a vida de volta aos mortos. Em seu livro, um pai ruim é perseguido para sempre por seu próprio bebê morto, punido por seu egoísmo e indiferença por uma criatura semelhante a um cadáver, semelhante a uma criança que se recusa a deixá-lo esquecer, recusa-se a deixá-lo amar qualquer outra pessoa, se recusa a deixa-lo começar uma nova família ou se concentrar em seu trabalho ou fazer qualquer coisa, além de sentir vergonha do seu próprio terrível fracasso.


Claro, o monstro de Frankenstein também é um nascimento que traz a morte com ele. E, claro, Clara não foi o primeiro encontro de Shelley com os perigos do parto do século XIX. Mary Shelley era filha da mãe do feminismo, Mary Wollstonecraft, que morreu de septicemia poucos dias após o parto. Shelley nunca teve permissão para esquecer o que tinha feito; não só as realizações de sua famosa mãe continuavam a ser exibidos antes dela, mas o seu nome de solteira, Mary Wollstonecraft Godwin, pertencia primeiro à uma mulher morta. (O “Frankenstein” é o nome do monstro, ou do médico? É um nome de família, provavelmente de ambos.)


Ao longo do romance, o leitor é levado a odiar Victor Frankenstein por sua fraqueza. O ponto de virada ocorre quando o monstro mata William, o irmãozinho de Victor, e a culpa cai para a criada, Justine, que deveria estar cuidando dele. Victor sabe muito bem que o monstro matou William — ele viu o monstro pouco depois — e que Justine é inocente. Ele também sabe que ela será condenada à morte se for considerada culpada. No entanto, ele consegue participar de todo seu julgamento e sua sentença, e até mesmo visita a cela de Justine em suas últimas horas — em algum momento, ela arruinou o seu nome permanentemente, dando uma falsa confissão para fazer seus carcereiros felizes — sem dizer uma palavra em defesa dela. Victor Frankenstein poderia salvar a vida desta mulher; tudo o que ele teria que fazer é confessar o seu próprio erro ao fazer a criatura. Em vez disso, ele se senta no canto, sentindo pena de si mesmo, e deixa Justine morrer enquanto se lamenta interiormente sobre “a horrível angústia que me possuía”.



No entanto, todo o livro está preenchido com esse tipo de culpa e assassinato por contagio; sim, todos que se aproximam de Victor morrem, e não, ele não faz nem um mínimo de esforço para impedir que isso aconteça, mas no mundo de Shelley, amar alguém é sempre mantê-los apenas um pouco afastados da morte. Há a noiva de Victor, Elizabeth, que contrai febre e acidentalmente mata a mãe de Victor, ao permitir que ela entre na sala estando doente. Também, há Justine, que se distrai durante o seu trabalho como babá e ao voltar, percebe que o bebê está morto. As primeiras palavras de Elizabeth, ao verem o corpo de William, são “Oh, Deus! Eu matei a minha querida criança. “Ela não teve nada a ver com isso, mas seu primeiro instinto — um que pode ter sido aprimorado desde que Caroline Frankenstein entrou em sua sala doente — é se chamar de assassina.


Mary Shelley era seu próprio cientista louco e seu próprio monstro; ela era uma mãe que matou sua filha e uma filha que matou sua mãe. Seus pecados simétricos e imperdoáveis ​​assombram o romance, e continuam reaparecendo em novas formas, até que o pai monstruoso e a criança monstruosa se reconciliem em um ato de aniquilação mútua. O monstro de Frankenstein quer morrer, mas só pode fazê-lo depois que ele conseguir matar Victor Frankenstein; Victor Frankenstein quer morrer, mas tem que matar seu monstro. No final, ambos desaparecem no deserto gelado. Nem um nem outro podem pertencer ao mundo.



Por que o terror? Por que o grande épico feminino sobre parto do século XIX tem que ser uma história de monstro; por que não poderia ser doce, terno, edificante, todas aquelas coisas que nos dizem que a maternidade deve ou que inevitavelmente deveria ser?



Embora a experiência com o parto de Shelley tenha sido brutal, ela não era única. Em 1797, quando Shelley nasceu, cerca de 7,5 mulheres morreram durante o parto por cada 1.000 nascimentos que ocorreram; esse número não parece alto, mas, dada a falta de controle efetivo sobre a natalidade ou aborto médico, a maioria das mulheres tiveram muitas crianças. Suas chances de sobrevivência ficaram cada vez mais ínfimas. Os bebês estavam ainda piores; em meados do século XVIII, mais de 25% de todas as crianças inglesas e galesas, morriam antes do seu quinto aniversário. Dois dos próprios filhos de Shelley eram estatísticas. Além de Clara, seu segundo filho, William, morreu quando tinha dois anos — apenas alguns meses depois de Frankenstein ter sido publicado. Somente seu terceiro, Percy, viveu até a idade adulta.


Não estamos longe disso; não é uma barbaridade antiga e irreconhecível, mesmo que Mary Wollstonecraft tenha morrido porque o seu médico não sabia que deveria lavar as mãos. Ainda hoje, até 25% de todas as gravidezes terminam em aborto espontâneo; A “pequena faísca de vida” capta, ou não, e ninguém pode trazê-la de volta uma vez que se foi. Podemos salvar mais crianças prematuras; nós temos a tecnologia para manter Clara Shelley viva, ou tentar. Mas, todos os anos, 23 mil bebês americanos morrem antes do primeiro aniversário, várias vezes sem motivo perceptível — a maioria esmagadora é de bebês negros, que não recebem uma assistência médica padrão e adequada em comparação com os seus homólogos brancos. A mortalidade materna pode ter caído dos altos vertiginosos do século XVII. Mas ainda é a sexta causa mais comum de morte para mulheres entre 20 e 34 anos — e, nos Estados Unidos, está aumentando.


Em 2016, uma mãe cujo bebê morreu sonhou “com um bebê em uma máquina de lavar. Ela enrolou as roupas sujas e fechou a porta. A porta foi travada. A água se precipitou. Então ela o viu, flutuando por detrás do vidro. Frenética, ela apertou um teclado na máquina, procurando por um botão para destravar a porta. “Água aumentando, crianças perdidas, e um bebê que estará para sempre em perigo e para sempre fora do seu alcance; tudo faz parte de uma história que remonta a Mary Shelley, sonhando em esquentar o corpo de seu próprio filho em frente ao fogo, tentando encontrar alguma maneira de substituir uma faísca que se extinguiu.



Muitas vezes, as mulheres ficam envergonhadas de escrever sobre a maternidade, pensando que o assunto as lançará para sempre na categoria de mulherzinha, do fofinho, do que é vago e lamentavelmente feminino. “É sobre maternidade”, Sarah Menkedick, lembra-se de contar para uma plateia, “mas vocês sabem, é mais do que isso!” Ela imagina que “os leitores irão se ligar no segundo que ouvirem a palavra” maternidade “. Seus cérebros serão inundados com uma luz branca e beatífica dos comerciais de fraldas, serão preenchidos por uma voz cantada dizendo coma as suas ervilhas! “No entanto, a maternidade não é um comercial de fralda ou um cenário de um berçário de cor pastel. A maternidade não é nada segura, ou familiar. A maternidade é uma longa jornada sobre água escura, uma viagem a um lugar que você nunca esteve. É um lugar onde as mulheres devem, inevitavelmente, confrontar sangue e dor e seus próprios limites físicos e mentais. Algumas dessas mulheres não sobreviverão.

Mary Shelley nunca tratou a maternidade como algo trivial. Ela não poderia; ela tinha visto demais. Esse conhecimento é o que alimenta Frankenstein. Sua brutal intimidade abriu uma veia de horror reprodutivo que ainda está fluindo; Shelley deu à luz a Alien, Eraserhead e ao O Bebê de Rosemary tanto quanto, certamente, formou qualquer história sobre um cientista louco em um laboratório. Ela restaurou a dignidade de uma experiência feminina marginalizada, restaurando totalmente a sua dose de terror; nos forçando a honestamente, considerar a maternidade, como algo a se temer.

Postado originalmente no Medium.



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