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A misoginia revestida de arte e ironia em "A casa que Jack construiu" (2018)

“A casa que Jack construiu” (2018) é o mais recente filme do diretor dinamarquês Lars Von Trier, conhecido por dirigir filmes como Melancolia (2011), Anticristo (2009) e Ninfomaníaca (2013). Conhecido também por declarar que “simpatiza com Hitler” no festival de Cannes em 2011 e por ter abusado da atriz e cantora Björk durante as gravações de seu filme Dançando no Escuro (2001). Além disso, a produtora Zentropa, fundada por Lars, foi palco de casos de abusos denunciados por nove ex-funcionárias. Esses últimos fatores já deveriam ser o suficiente para que o público e a mídia sabotassem o diretor, como foi o caso por exemplo de Kevin Spacey e Harvey Weinstein, mas não foi isso que aconteceu. Com seu novo filme, Lars voltou a participar do festival de Cannes e o longa entrou para a seleção oficial do mesmo, além de receber inúmeras críticas positivas de diversos sites e revistas cinematográficas e ser chamado de “Brilhante obra de arte”. Por que isso acontece?


Bom, primeiramente devemos considerar que na sociedade patriarcal na qual estamos inseridos as palavras de Lars – e de qualquer outro homem, especialmente se este for branco e heterossexual – valem muito mais do que as palavras da atriz Björk, e de quaisquer outra mulher. Ela o denunciou e depois novamente reafirmou o abuso físico e psicológico que sofreu pelo diretor, inclusive dando detalhes de tudo o que ele fez, porém assim que ele simplesmente negou as acusações, parece que todos acreditaram na palavra dele sem hesitar e seguiram ignorando tudo o que ele fez, porque afinal de contas é tudo tão inteligente e conceitual. E é nesse ponto que eu quero chegar, falando em específico de “A casa que Jack construiu”, o filme coberto de misoginia disfarçada do início ao fim.



O filme conta a história de Jack, um assassino em série que mata em sua grande maioria mulheres, e é divido em partes, assim como outros filmes do diretor já o fizeram, que são 5 incidentes ditos aleatórios de sua vida de assassinatos, ligando a narrativa do começo ao fim com uma conversa pretensiosíssima – o que Ninfomaníaca também já o fez – entre o assassino e alguém que só é revelado ao fim da história. O primeiro assassinato é de uma mulher interpretada por Uma Thurman, que pede insistentemente por ajuda para consertar o carro no meio da estrada, e depois pede carona de ida e de volta ao mecânico e que durante o percurso não para de falar por nem um instante, sendo uma personagem forçadamente irritante que insinua que ele poderia ser um serial killer, que ele iria matá-la ali mesmo, até que ele de fato a mata, como é óbvio. O próximo assassinato que presenciamos é de uma mulher, já mais velha, que o assassino convence de deixá-lo entrar em sua casa, depois de uma conversa constrangedora, e sob um pretexto rídiculo de que ela poderia aumentar sua renda, exibindo como a mulher é gananciosa e interesseira, a fazendo ceder. Há também um “piquenique” que termina com o assassinato de uma mulher, a qual parecia estar envolvida com o assassino, e de seus dois filhos pequenos, cujo um deles demonstra através de uma fala que não queria estar ali e a mãe o forçou a ir, então é claro que ela é uma péssima mãe. E não menos importante, o assassinato hiperssexualizado do estereótipo de loira burra em sua própria personificação: uma mulher de cabelos loiros compridos, magra porém com grandes seios (que são exibidos no filme), roupa curta e decotada e usando salto alto dentro da própria casa, que tem um diálogo com Jack que serve para confirmarmos que ela é “burra” quando perguntada sobre qual a diferença entre um engenheiro e um arquiteto, e que mesmo ele a tratando mal e literalmente falando que era um assassino, ela ainda acredita nele, o que a leva à morte. Além disso, é nos mostrado dois assassinatos de outras duas mulheres completamente avulsos à narrativa, simplesmente para exibir mais violência gráfica contra as mulheres.


Como podem perceber, em negrito estão destacadas todas as características das personagens assassinadas, ou melhor, todas as justificativas que o filme dá para elas terem sido assassinadas. O filme literalmente justifica a morte dessas mulheres e o primeiro pensamento que o filme nos induz a ter após a morte de cada uma é o mesmo que permeia os pensamentos da sociedade toda vez que uma mulher é estuprada ou assassinada: Ah mas quem mandou pegar carona na rua e ainda irritar um homem aleatório? Ah mas também, deixou um homem desconhecido entrar na casa só por causa de dinheiro. Que mãe é essa que leva os filhos pra um piquenique no meio do nada sendo que o filho disse que não queria ir? Mas ele disse que era um assassino, como essa burra ainda passou a mão na cabeça dele?



A narrativa do filme, o personagem principal, a violência contra as mulheres, os diálogos do filme, enfim, tudo, é tão obviamente machista e misógino, que na verdade faz com que se disfarce a misoginia sob a justificativa da ironia e do humor negro, pois o conteúdo é tão absurdo que nos cria a falsa impressão de que “o diretor está sendo irônico e não pensa da mesma maneira, na verdade ele está criticando o machismo”. Esse tipo de conduta é típica do chamado machismo irônico, um tipo de machismo que reveste suas falas e atos de ironia para torná-los mais palatáveis. É tão escroto quanto o machismo clássico porém muito mais difícil de identificar, pois ele é “tão claramente machista que não pode estar falando sério”.


“Ambos são nocivos, mas ao se esconder por trás de uma camada de ironia, o machismo irônico se isenta de responsabilidades e ganha uma espécie de imunidade a críticas e revoltas. Afinal, é fácil se revoltar contra o machismo clássico justamente porque ele é tão abertamente discriminatório. Já se revoltar contra o machismo irônico, com suas piscadelas marotas e sorrisinhos de lado que dizem “é só uma brincadeira, eu não penso isso de verdade”, quase certamente lhe renderá o título de exagerada, sem graça ou louca.” – Machismo irônico e por que é preciso ter cuidado com ele via Nó de Oito


E o machismo todo se torna mais difícil ainda de se perceber em um filme repleto de alegorias bíblicas, metáforas pretensiosas, diálogos pseudointelectuais e uma realmente boa atuação de Matt Dillon, que interpreta Jack. Assim como outras obras audiovisuais do diretor dinamarquês, esse é o típico filme “para poucos compreenderem”, feito sobretudo para alimentar o ego de quem consegue reconhecer as obras de arte que são inseridas ao longo do filme e entender as referências que o diretor cospe durante a narrativa como forma exibir toda a sua “inteligência”, chegando ao ponto de se autorreferenciar através de inserts de cenas de outros filmes dirigidos por ele mesmo, uma prova de sua autoestima masculina que de fato me impressiona principalmente parando pra pensar que TODAS as mulheres do meu convívio, sobretudo as artistas e cineastas, desejariam ter um pouco dessa autoestima – que é quase que intrínseca aos homens – pois nós nascemos e crescemos aprendendo a nos odiar e precisamos batalhar incansavelmente para sentir o mínimo de reconhecimento e orgulho próprio de nossas obras.



Além de tudo, não é possível criar-se nenhuma empatia e identificação pelas mulheres assassinadas pois estas nos são apresentadas de forma rasa e estereotipada, sendo tratadas e exibidas como animais, enquanto que a narrativa é conduzida sob o olhar masculino do assassino, fazendo com que nos aprofundemos em sua mente complexa e bem construída. E por último mas não menos importante, ao final do filme, no momento em que Jack está prestes a matar vários homens de uma vez só, os primeiros homens adultos que nos seria mostrada a morte no filme, a sua ação é interrompida por uma das vítimas masculinas que corrige Jack e o faz perceber que ele estava usando o tipo de munição errada. Por fim, os homens não são assassinados. Não os vemos morrendo como vemos durante 2 horas uma série de mulheres sofrendo todo tipo de violência. A inteligência do homem é o que o salva, inteligência essa inexistente nas vítimas do sexo feminino, o que de acordo com o filme justifica a morte das mesmas.


Esse é só mais um exemplo do que a pesquisadora Laura Mulvey em seu livro Prazer visual e narrativo chama de Male Gaze, que é o olhar dominante do homem (nesse caso tanto do diretor quanto do personagem principal) sob a mulher, a tratando como mero objeto do prazer visual masculino, e obrigando o público espectador feminino ou a se identificar com o personagem masculino ou com as personagens femininas, vitimizadas e superficiais. Como dito anteriormente, não é tão simples assim identificar isto nos filmes, porém uma vez que identificado, o male gaze não deve ser ignorado. É preciso debater e expor o machismo nesses filmes e em quaisquer que sejam os âmbitos, é preciso parar de passar pano para homens que cometem abusos contra as mulheres, e parar de dar desculpas para filmes machistas, mesmo que estes estejam cobertos de uma aura de ironia e de pretensão, o que não justifica reforçarem estereótipos de gênero e tornarem a violência contra a mulher algo artístico e aceitável.

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