"Black Christmas" (1974), o neoconservadorismo e a misoginia
Com o objetivo de investigar a violência dirigida aos corpos femininos no Cinema de Horror associado ao movimento neoconservador que tomava força nos anos 70, têm-se como objetivo deste artigo, realizar uma análise do filme canadense “Black Christmas” (1974), dirigido por Bob Clark e escrito por Roy A. Moore. O filme é um dos precursores do subgênero do Horror, o Slasher - subgênero esse fundamentado na misoginia, cujas mortes das mulheres são as mais violentas e sanguinárias possíveis, e são igualmente consideradas um ato de punição por comportamentos femininos considerados transgressores em um contexto abertamente patriarcal e machista.
Sendo o filme “Black Christmas” um dos primeiros deste subgênero, pretende-se analisar como os seus símbolos imagéticos e narrativos contribuem e dão força para um movimento político reacionário à contracultura e as forças libertárias das décadas de 60 e 70, e que demandava o retorno dos valores tradicionais. Contribuição esta que perdura no subgênero Slasher, tendo esse movimento neoconservador encontrado no Cinema um forte aliado, onde pôde implantar ideias que, conscientemente ou não, reproduzem um discurso de misoginia, em contra-ataque às vertentes feministas que ganhavam força na época.
As estórias de horror habitam os folclores populares de diversas culturas e povoam o imaginário das pessoas desde os primórdios da humanidade. Lendas sobre espíritos malignos, contos focados na vida, morte, e até na vida após a morte foram perpetuados pela tradição oral, e se fazem presentes na literatura desde que houveram os primeiros registros escritos – como pode-se perceber em contos folclóricos da Idade Medieval. O prazer em sentir medo é atenuado quando esse medo não pode, de fato, causar mal algum a quem assiste ou lê uma obra de Horror: há o distanciamento entre o real e o fictício, entre o leitor e seu livro, entre o espectador e a tela. No entanto, a capacidade de se colocar no lugar do outro, e nesse caso no lugar dos personagens, é inerente aos humanos e faz com que a experiência literária ou cinematográfica se amplifique quando consegue refletir os medos e ansiedades da sociedade para a ficção.
O gênero de Horror no cinema foi inaugurado com o filme “Mansão do Diabo” (1896), de George Méliès. O filme de Méliès já se utilizava de elementos sobrenaturais para assustar e fazer emergir dos espectadores um misto de fascínio e amedrontamento, influenciado pela literatura gótica e de horror, que agora deixava de existir apenas no imaginário dos leitores e passava a ser transposta em imagens nas telas. Desde então o gênero se renova e reinventa, havendo ciclos de temáticas de maior interesse e audiência em determinadas épocas. Nos anos 20, por exemplo, seres advindos de instâncias sobrenaturais adquirem nova forma no Expressionismo alemão, que busca transpor os horrores da Guerra e da própria psique humana como os verdadeiros monstros. Bem como na década de 50 o cinema de Horror foi marcado por uma grande popularidade e audiência, devido principalmente aos estúdios Hammer, que resgatam antológicos personagens clássicos, havendo também uma proliferação de filmes de ficção científica aliados ao Horror. Nos anos 60, o terror psicológico foi o mais prolífero dos sub gêneros de Horror, tendo a sutileza e o mistério como principais aliados. Já na década de 70 – década na qual ‘Black Christmas’ foi feito – há o retorno da extrema violência em contraponto à sutileza da década anterior, tendo como principal premissa fílmica os assassinatos em série.
Eis que surge o subgênero Slasher, sendo considerado por muitos pesquisadores como inaugurado pela obra ‘Black Christmas’ (1974), o objeto de análise semiótica deste artigo. Os filmes ‘Slasher’ consistem, narrativamente, em um assassino que mata um grande número de vítimas, que na sua imensa maioria são jovens com comportamentos transgressores (principalmente no âmbito sexual), além disso, as mortes das mulheres são as mais violentas e explicitamente sanguinolentas, havendo também a ocorrência de uma ‘Final Girl’: a personagem que sofre muito durante o filme todo, e geralmente confronta o assassino no final do filme. Há exceções para essa estrutura fílmica, porém ela segue predominante até os dias de hoje nos filmes deste subgênero. Ao mesmo tempo em que o gênero de Horror se consolidou, modificou e se reinventou ao longo dos anos, bem como o ‘Slasher’ surgiu e fez enorme sucesso, a representação feminina no cinema – e mais especificamente no Horror – foi se construindo em cima de estereótipos de gênero e definindo claramente o lugar da mulher ora como objeto de prazer visual masculino, ora como ser monstruoso quando transgredindo normas, sendo sexualmente ativa ou quaisquer características que fujam do conceito de “normal” em um contexto abertamente reacionário, e ora as duas coisas ao mesmo tempo.
Considerando então o cinema de Horror como um meio de capturar sentimentos, ansiedades e temores culturais, projetando os medos e inseguranças coletivas de uma sociedade na tela do cinema (PHILLIPS, 2005), percebe-se a ansiedade e o temor quanto ao corpo feminino desde a fundação da sociedade patriarcal na qual estamos inseridos, e posteriormente traduzindo-a para o cinema. Cinema este que possibilita que os sonhos e fantasias masculinas sejam engajados em torno de mulheres com corpos objetificados e idealizados, ou seja, construindo essas personagens muito mais como objetos do olhar do que como sujeitos (LAROCCA, 2016). No caso do ‘Slasher’, as personagens femininas são constantemente colocadas como vítimas de um assassino que age como punidor, levando morte e sofrimento às mulheres que possuem comportamentos libertários como, por exemplo, serem sexualmente ativas, possuírem desejo de escolha por seu próprio corpo, serem independentes de homens, dentre outras práticas condenáveis se vistas de um espectro neoconservador, que insiste em inferiorizar e subjulgar mulheres.
“Black Christmas” transpõe com clareza a misoginia personificada em forma de um assassino chamado Billy, que não é descoberto nem revelado em momento algum, sendo conhecidos pelos personagens e pelos espectadores apenas sua sombra e sua voz. As suas vítimas são exclusivamente mulheres que apresentam cada uma à sua maneira, atitudes rebeldes e estão em busca da própria liberdade e empoderamento em diferentes aspectos de suas vidas. O filme acompanha a rotina de uma agitada fraternidade de garotas, que comemoram as festividades de natal, porém são perturbadas com telefonemas de conteúdo macabro, que se tornam cada vez mais freqüentes. As atitudes sinistras passam de telefonemas ameaçadores à mortes violentas muito rapidamente, e uma a uma, as integrantes da fraternidade vão sendo assassinadas de forma brutal, restando apenas Jess, que sofre durante o filme todo com a morte de todas as suas amigas. As vítimas fogem do modelo de valores culturais tradicionalistas: Barb, por exemplo, expõe constantemente sua sexualidade ativa e possui vícios como o cigarro e a bebida, Sra. Mac é uma idosa solteira e alcoólatra, Phyllis é uma garota nerd fora do padrão de beleza, ou seja, algumas mulheres morrem pela sua sexualidade, outras pelos seus vícios, mas o motivo maior é sempre o mesmo: elas morrem por serem mulheres (CLOVER, 1993).
Além disso, pode-se evidenciar a misoginia estampada em ‘Black Christmas’ quando a personagem “escolhida” para sofrer mais ao longo do filme todo é Jess: uma jovem que está grávida do namorado Pete, porém determinada a realizar um aborto mesmo contra a vontade dele, e também recusa o pedido de casamento feito por Pete, alegando ser muito jovem para se comprometer, e que gostaria de dar mais atenção à sua vida profissional e pessoal, não querendo deixar seus sonhos de lado em nome de um relacionamento. Relacionamento esse que se mostra cada vez mais abusivo ao decorrer do longa-metragem, tendo Pete até mesmo entrado na casa de Jess sem sua permissão, além de ter um ataque de fúria quando ela revela que irá realizar o aborto. Pete chega a ser um dos principais suspeitos de ser o assassino, e sendo assim, o filme pode até ser interpretado como um conto moral sobre ‘o que pode acontecer com uma mulher que comete um aborto’, tendo em vista o conteúdo que reforça a misoginia, e o contexto histórico em que o movimento neoconservador de retorno aos valores tradicionais ganhava cada vez mais potência, além de que em 1974 - época em que o filme foi feito, o aborto ainda era ilegal no Canadá.
ANÁLISE
A primeira análise que pode ser feita utilizando o princípio da terceridade é do símbolo inicial, que aparece tanto no título do filme quanto em seu primeiro plano, imagéticamente e sonoramente: o Natal. Sabe-se que o filme se passa na época de natal não só por seu título Black Christmas (Natal negro), mas também pelo plano inicial de uma casa com decorações natalinas e o som de um coral cantando uma das mais conhecidas canções de natal: “Silent Night”, que no Brasil conhecemos como “Noite feliz”. O natal é o plano de fundo de toda a narrativa fílmica, porém não é só isso. O natal, que significa para os cristãos a celebração da vida, e principalmente do nascimento de Jesus Cristo, se contrapõe então a uma das tramas principais: o aborto de Jess. O aborto é uma prática totalmente condenável do ponto de vista cristão, e talvez por isso o nome do filme seja – em tradução livre- Natal negro, pois Jess mancha a tradição cristã justamente nesta data que novamente, para os cristãos, é significado de celebração de nascimento, praticando um aborto contra a vontade do namorado. O que também pode ser considerado um comportamento claramente transgressor pelo cristianismo, que foi fundado em cima da patriarcalidade e tradicionalmente coloca as mulheres como submissas aos homens.
Outro signo, agora físico e palpável, é o crucifixo que se faz presente ao redor do pescoço e acima do peito de Jess, que pode ser interpretado como uma forma de lembrar tanto a personagem quanto os espectadores do pecado que ela cometeu e da mancha em sua tradição cristã. Além disso, os homens no filme apresentam com frequência comportamentos de cunho machista. Pete é o namorado abusivo de Jess, e expressa com raiva e violência o seu descontentamento com a decisão da personagem em abortar, sendo agressivo ao dizer que “ela não vai abortar esse bebê” e que “se ela abortar o bebê, ela vai lamentar muito” em claro tom de ameaça direta, que nos remete a um contexto machista no qual o homem acha que possui o direito de escolha por sobre o corpo da mulher. E novamente quando ela rejeita seu pedido de casamento ele demonstra atitudes violentas. Sendo assim, pode-se considerar que seu aborto alimenta a narrativa e serve como uma metáfora que busca justificar a raiva masculina e a violência contra as mulheres, particularmente no contexto da política de gênero de 1974 (JUSTICE, 2006).
O pai de Clare, garota que foi a primeira vítima do assassino, também evidencia o machismo em seu discurso quando vai à delegacia e o policial tenta o tranquilizar dizendo que na maioria dos casos de garotas desaparecidas, elas são encontradas com os namorados e ele responde com descontentamento “isso não serve de consolo”, mostrando que não gostaria que a filha estivesse se relacionando com alguém, reforçando os valores neoconservadores de que a sexualidade feminina deve ser preservada. Além do mais, os policiais que tentam ajudar no caso, falham constantemente e não conseguem solucionar nada: não descobrem quem é o assassino e nem conseguem proteger as mulheres, e só ao final do filme conseguem rastrear as ligações que, sem sucesso, tentam fazê-lo durante a trama toda.
O assassino Billy não tem sua face revelada em nenhum momento do filme, sendo que a câmera por muitas vezes nos mostra as coisas pelo ponto de vista dele, e quando o vemos é só alguma parte do seu corpo, como seu olho ou suas mãos enluvadas, ou sua silhueta na escuridão. As ligações telefônicas sempre agem como prelúdio do próximo assassinato que ele irá cometer, e as vozes que são ouvidas são praticamente não identificáveis justamente por serem múltiplas, como se houvessem mais pessoas com ele, emitindo diferentes sons ao mesmo tempo. Um assassino sem uma face definida, e com múltiplas vozes pode ser a chave para, conforme o segundo nível de interpretante, produzir o efeito de estampar toda uma sociedade misógina e machista nas mentes interpretantes do público espectador, exibindo e dando força a um movimento neoconservador que condena mulheres que têm vontade própria por sobre seu corpo, mulheres que não possuem características maternais ou desejo de casar, mulheres que cometem abortos, mulheres que têm vícios, enfim: mulheres.
Após analisar a obra pode-se entender que de fato ‘Black Christmas’ dá margem e fomenta uma interpretação de que esta seja uma obra de conteúdo misógino, ou que ao menos, expõe a misoginia da sociedade. Levando em consideração, além desta interpretação simbológica, o contexto histórico e social no qual o filme estava inserido na época em que foi feito, há grandes evidências de que ele efetivamente reforça o discurso e os pensamentos neoconservadores que ganhavam força na década de 70, como resposta contrária aos movimentos sociais de equidade e as lutas feministas que também se tornavam cada vez mais veementes.
Vale também ressaltar a importância de se problematizar a representação feminina no cinema de Horror, visto que mesmo nos dias de hoje ainda se colocam mulheres em papeis de humilhação com finalidade simplesmente de dar prazer visual a espectatorialidade masculina, além de a violência direcionada ao corpo feminino ser a frequentemente a mais sádica, cruel e sanguinolenta na maioria dos filmes do gênero.
REFERÊNCIAS
CLOVER, Carol J. “Her body, himself: gender in the slasher film”. In: JANCOVICH, Mark (Ed.). Horror – The film reader. London and New York: Routledge, 2002, pp.77-90.
JUSTICE, Chris. Review: Black Christmas (1974). {online} Disponível na Internet via https://classic-horror.com/reviews/black_christmas_1974
LAROCCA, Gabriela Muller. O Corpo Feminino No Cinema De Horror: Gênero e Sexualidade Nos Filmes Carrie, Halloween E Sexta-Feira 13 (1970 - 1980). {online} Disponível na Internet via http://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/41967
PHILLIPS, Kendall R. Projected Fears: Horror Films and American Culture. Westport: Praeger, 2005.