Mate-me por favor: explorando o binômio sexo e violência
Mate-me por favor, longa de estreia da carioca Anita Rocha da Silveira, é uma aposta ousada e muitíssimo bem-sucedida do cinema de horror nacional.
O longa, que garantiu à Anita o prêmio de melhor direção no Festival do Rio de 2015 - e concorreu, inclusive, ao prêmio de melhor filme na mostra Horizontes da 72 edição do Festival de Veneza - conta a história de Bia (Valentina Herszage), uma adolescente introspectiva que, pouco a pouco, se vê fascinada pelas vítimas de um assassino em série que assola a região da Barra da Tijuca. Ela e as amigas visitam e revisitam o terreno baldio onde ele costuma abandonar os cadáveres, fuçam os perfis das vitimas nas redes sociais, lendo os depoimentos dos amigos lamentando as mortes brutais, e Bia chega até mesmo a ir ao enterro de uma delas.
Indubitavelmente, o fascínio mórbido de Bia ajuda a construir a atmosfera sombria do filme - e, em uma primeira sessão, é definitivamente seu aspecto mais marcante - mas o horror de ‘Mate-me’ se alicerça, principal e prioritariamente, na conjunção entre desejo e violência. O tema aparece desde a primeira vez em que vemos as meninas, logo na segunda sequencia, quando Michelle (Júlia Roliz) narra seu pesadelo: ela e um cara mais velho se encontram no banheiro de uma festa, se beijam. De repente, ele a joga contra a parede, rasga suas roupas, tampa sua boca e abusa dela. Ele a deixa jogada no chão, completamente ensanguentada, e ela morre. Mais do que antecipar o destino das vítimas - em sua maioria, mulheres -, esse pesadelo anuncia o questionamento principal que Anita nos propõe: em que ponto exatamente o desejo se transforma em violência? E quando a violência se mascara de desejo? Até que ponto um alimenta o outro? É possível dissociar os dois?
O filme sugere que não; e o sentido do seu horror está justamente na exposição da fragilidade dessa fronteira. Quer dizer, se é impossível determinar/controlar essa linha, até que ponto nossas próprias relações são seguras? Como afirmar que também elas não vão descambar pra tragédia? ‘Mate-me’ acerta ao mostrar que o perigo pode estar em qualquer lugar, inclusive do nosso lado, e a violência pode partir das pessoas em que confiamos; por vezes, até de nós mesmos.
Daí a felicidade da inclusão literal do célebre poema de Augusto dos Anjos no filme, cujos céticos versos já nos avisam: ‘O beijo, amigo, é a véspera do escarro; a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga; apedreja essa mão vil que te afaga; escarra nessa boca que te beija!’.
Uma grande qualidade da obra é a forma eficaz como ela consegue recuperar elementos ‘’bobos’’ do universo pueril e ressignificá-los a favor da proposta principal, preservando tanto a atmosfera jovem quanto o clima de perigo. A brincadeira ‘Cidade dorme’, por exemplo, vira uma metáfora para representar o que esta realmente acontecendo na vida daqueles adolescentes, com um assassino à espreita, escondido nos rostos comuns.
A montagem e a trilha sonora também são usadas para reforçar a mensagem principal. Uma cena icônica nesse sentido acontece quando Bia esta no enterro de uma das mulheres: enquanto a câmera focaliza o rosto pálido da vitima, Anita nos faz ouvir o alegre refrão de ‘Nosso sonho’, de Claudinho e Bochecha, em que o eu-lírico, apaixonado, promete à amada, ‘’Nosso sonho não vai terminar desse jeito que você faz; Se o destino adjudicar, esse amor poderá ser capaz, gatinha’’. E quantas promessas de amor não acabam justamente em violência? Quantos casos de feminicídio, por exemplo, não ouvimos falar diariamente? A denúncia da violência contra a mulher também se faz bem presente no filme, embora nas entrelinhas - não só pelo fato de a maior parte das vitimas serem mulheres, mas também pela recorrência da temática do estupro.
Outro grande mérito do longa é a escolha da região da Barra de Tijuca - ainda pouco explorada nos filmes cariocas - como local de caça do serial killer. A paisagem representa exemplarmente o vazio e o isolamento não só de Bia, mas de toda uma geração acuada, que se isola em infinitos condomínios fechados, desaparece anônima no transito das largas avenidas e cresce escondida em escolas particulares. Além disso, a obra conta com francos momentos de espetáculo que amortecem o ar soturno do filme: em um dado momento, os alunos dançam uma coreografia de funk diretamente para a câmera, quebrando a diegése, e, recorrentemente, acompanhamos os sermões que a pastora jovem prega: vestida com roupas choc, ela canta músicas de adoração a Jesus à frente de uma cruz neon e sua forma de mobilizar os fieis é fazê-los entoar junto a ela o funk gospel. Momentos como esse revelam não só a postura declaradamente surrealista do filme, mas o uso profundamente irônico da trilha sonora escolhida por Anita.